domingo, 27 de março de 2022

Hoje.

Nos claustros das minhas memórias a tua é das que mais ressoa em ecos saudosos mudos.

A única que nunca, nunca escolheria ter para recordar. Para mim ias ser sempre eterno, sempre de braços abertos para mim, com o teu sorriso largo e doce. 

"Coração ao largo", disseste-me uma vez, quando te procurei em busca de conforto para uma tomada de decisão que ia mudar uma vida. A minha. E com o coração nas mãos fui. Sabia que, desse por onde desse, ias sempre estar lá, independentemente do que o futuro poderia reservar. E sempre com o meu lugar no teu colo quando decidisse voltar.

Sinto tanto a tua falta... A névoa apática que se instalou nos meus dias teima em toldar-me o coração, em fazer-me esquecer que a realidade é esta, que não te vou voltar a ver, ou ouvir, ou abraçar, ou simplesmente sentar-me na mesma mesa contigo e partilhar família e gargalhadas à volta de uma refeição. Horas de descrença em que não acredito, em que automatizo o dia a dia e que me privo de sentir seja o que for para evitar que a dor que carrego transborde. Para evitar lembrar. 

Porque lembrar dói tanto. 

Porque não consigo aceitar que o sol já não te traz a cada manhã, que o teu telefone já não toca e que a tua cadeira está vazia. 

Porque não sei lidar com este vazio, com este sem sentido das coisas, com as sombras que se instalaram na minha alma e com a metade de mim que morreu quando me deixaste.


E agora?.. 


Guardo tudo o que me ensinaste, todas as músicas que cantarolávamos nas viagens de carro, os nossos assobios e o batuque que fazias que eu tinha que completar, fosse quando fosse, onde fosse! Guardo as tuas rugas de expressão quando te rias, o teu cabelo fino quase sem brancas e o cheiro da tua pele quando te abraçava nas pontas dos pés. Guardo o "Gosto de ti daqui até à China", e naquela altura os meus olhos brilhavam como duas estrelas de açúcar, tão longe que era!..

Guardo as aulas de bicicleta, as quedas e os joelhos esfolados e o teu encolher de ombros, resignado, enquanto eu chorava .."Lá vais ficar aqui com uma medalha para o resto da vida.."

Guardo, sobretudo, o "Estás feliz? Isso sim, é o mais importante."


O meu primeiro herói, o meu primeiro amor, o meu Rei.


"Please just tell me you're alright
Are you way up in the sky?
Laughing, smiling, looking down
I know one day we'll meet in the clouds."

Até já Pai.


***


domingo, 8 de novembro de 2020

Calendário do Advento

Quando a noite caiu pendurei a custo o Calendário na parede.

Sentei-me no chão poeirento, sacudi as mãos e encarei a tarefa dolorosa que me tinham deixado, qual Sísifo. Era demasiado grande, demasiado pesado, demasiado feio para ser real. Mas ali estava ele,  pendurado numa parede suja, imponente e majestoso numa glória vã e arrogante, a fitar-me através de todas aquelas janelas fechadas de vidro fosco. Cada uma delas com histórias escondidas. 

Nos primeiros dias abri as portinholas com um ímpeto orgulhoso, de mão estendida e coração aberto, de olhos arregalados de expectativa. Com a ténue esperança de criança que a próxima seria sempre a melhor, nunca a anterior. Queria, precisava de uma resposta para respirar. Tal como numa inundação. A primeira coisa que procuramos é uma bóia. Uma ilha. Um porto seguro. Uma salvação.

Mas a cada dia que passava a vontade diminuía, com surtos de nervosismo que me tiravam o sono, com receios que me cortavam os pulmões e abafavam o estômago, com quietudes depressivas de loucura. Atrás de cada janelinha não encontrava nada mais do que aquilo que já sabia lá estar. Dor e mágoa. Memórias e recordações. Doces e amargas. Sorrisos e lágrimas. Abraços e despedidas. Beijos e costas voltadas. Mãos dadas e separações. Amor e ódio. Expectativas moribundas e desilusões. Desejos e vontades. Palavras e olhares. Sabores e aromas. E a ânsia fervorosa de abrir mais uma janela a cada dia que o Calendário marcava foi dando lugar à prostração, ao dever de aceitar que aquele Calendário era meu, e o que se escondia naquelas portinholas era tudo menos uma surpresa.

E com o tempo uma apatia melancólica e carunchenta impregnou-se nos meus poros, nos meus pulmões, nos meus movimentos, no meu sono e na minha alma.. .


Hoje abri a última janela do meu Advento. 

E atrás dela a gelada compreensão de todas as premissas. O quão importante foi ter todas aquelas janelas do Calendário com histórias e experiências em permanente movimento, com sensações em montanha russa, com dias repletos de Vida...

...


Porque é a vida sem sal que faz subir a tensão. A vida do vai-se andando, do café morno, intragável. Do mais ou menos, do relativamente bem.


 Isso é que nos mata devagar.



***


segunda-feira, 22 de julho de 2019

Fé em quê?

Fé.
Fé no tempo que vai passar.
Fé no caminho que aí vem.
Fé no teu coração e nos teus pés.
Fé no amanhã.

A minha fé durou muito tempo. Cresceu quando um sorriso se abriu para mim, quando um par de braços me acolheu. Fortaleceu quando ouvi promessas e eternas palavras de dedicação e carinho, quando o encaixe de duas almas e de dois corpos se tornou perfeita. Perseverou em dias de solidão e tempestade, em amargas palavras e em abandonos. E terminou com grotescas crueldades.

Dizem que as pessoas abandonam o teu caminho porque "Alguém" estava lá a ouvir as conversas quando não estavas presente. Quando a fé acaba porque não encontrar algum conforto nisso? No facto de realmente haver algo que possa justificar o inexplicável, que tu nunca entenderias, e que tu nunca soubeste nem vais saber?... A ignorância nunca foi o meu forte. Esta ânsia de querer saber, de querer explicar, de querer compreender, de perceber porque é que o meu instante mágico não teve nada de mágico, afinal?.. Sonhamos tanto, imaginamos tanto, acreditamos tanto, e numa noite como outra qualquer um tremor de terra avassalador engole toda a tua fé na Humanidade. No amor. Nas promessas que no fim não foram mais do que palavras vazias. Como manter a crença em tudo o que foi dito se o que foi feito é exactamente o oposto do pregado?...

Por mais que batas numa parede ela nunca se vai transformar numa porta.
Podes gastar as tuas forças, magoar as mãos e a cabeça. Nunca se vai transformar numa porta.

Humilhação. É esse o nome para isso.

E humilhada é a palavra certa quando penso porque perdi a minha fé.
Senti-me humilhada, arrastada no chão, apedrejada pelas minhas escolhas e pela minha dedicação. Fui livre, somos livres!, de fazer as nossas escolhas, mas somos prisioneiros das suas consequências. E esta prisão parece-me perpétua. O tempo passa!, respondem. Sim, o tempo passa. Mas as coisas não se esquecem. Podemos até um dia conseguir perdoar, mas nunca vamos esquecer. As cicatrizes ficam, na alma, no coração e no que somos a partir desse dia. Aquele instante mágico pode-me ter levado por esta estrada, mas o fim do caminho parece-me igual se tivesse escolhido outro rumo.
De que serviu seguir o meu coração e fazer o que me faz feliz?.. O resto não veio por acréscimo.
O resto é... apenas isso.. Restos do que foi, farrapos do que sonhei, pedaços queimados da confiança que cegamente depositei em alguém.

Fé.
Fé em quê?



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segunda-feira, 15 de julho de 2019

Estranhos

O que aconteceu ao mundo que nós conhecíamos..?
O que fizemos a todos os sonhos, a todos os sentimentos, a todos os abraços?

Como numa qualquer arrumação do sótão empacotamos tudo em caixotes de papelão, sem qualquer respeito pela ordem das coisas..empilhamos uns em cima dos outros, esmagados e abafados pela pressa de regressar à vida cómoda de outrora, onde o coração não sabia bater forte, onde as borboletas não sabiam existir, antes ainda de descobrir uma morada no abraço do outro...

A porta bateu com força. Atrás dela ouço os tumultos estridentes e estrangulados, abandonados a uma sorte ditada por tudo aquilo que não tivemos coragem de dizer. Às vezes precisamos de sair da ilha para ver a ilha.. ainda que isso signifique sacrificar todas as crenças que tinha nesta caminhada e ver como tudo muda num só minuto...

E o mundo parou, por instantes. Não consigo precisar o tempo. O tempo é tão relativo...nestas coisas do coração é demasiado imprevisível quando deixamos de sentir as pernas tremer, as mãos a fraquejar e a alma a ceder... como fotografias na retina passamos em revista palavras e atitudes, silêncios e abandonos...sentimos tudo como se tivesse sido hoje, agora. Sem nenhum adeus, sem nenhuma explicação, somente um vazio e uma porta fechada...

Guardo ainda nas pontas dos dedos cada traço de ti e cada fio de cabelo. Guardo as linhas do teu sorriso e do teu franzir de testa, cada trecho da tua gargalhada e cada centímetro do teu abraço. Guardo o cheiro do teu perfume e o meu espaço no teu pescoço.


Mas, subitamente, passaste a ser um estranho que carrega todos os meus segredos...


"I want you bad, but it's done
I'm bleeding out, 'cause we can't go on
I want you bad, 'til I shake
I want what we had, but what's broken don't unbreak.”

***


domingo, 23 de junho de 2019

Acto de Contrição

Talvez tenha feito que chegasse...
Talvez o troféu não seja Amor. Só mais uma lição de vida...
Talvez tenha feito que chegasse...

De mãos abertas e de coração nas mãos mostrei-te as cicatrizes, os contornos doridos e as feridas, as marcas e os entalhes talhados por tudo aquilo que um dia me magoou. Esperei que o facto de o ter tirado do peito e to ter mostrado mudasse alguma coisa, esperei que a tua mão repousasse nele, que as pontas dos teus dedos percorressem todas aquelas falhas e as entendesses, que o teu toque fosse suficiente para acalmar os meus medos e sossegar o que de mais precioso carrego...

E a Vida aconteceu.

Dias de chuva vieram. De neve. De escuridão.
E eu continuei ali. De pele rasgada, de peito aberto, com o coração nas mãos, à espera. À espera de um sol primaveril que trouxesse alguma esperança à minha alma. Mantive o meu posto durante as tempestades, as minhas crenças, as minhas certezas naquilo que me tinha feito querer mostrar-te o meu verdadeiro eu. Como uma criança à espera de um abraço, à espera de que o Tempo remendasse tudo aquilo, com as malas à porta pronta para embarcar e voltar a guardar o meu coração dentro do peito junto com o afago do teu amor.


Mas a Vida aconteceu.


Olho para mim agora, esmagada pela realidade, em frente a um espelho que não reflecte mais aquilo que eu sempre quis ver. A verdade é dolorosa, e a necessidade de quebrar este feitiço é avassaladora... como uma boneca de trapos, remendo em cima de remendo, pedaços de histórias vividas e ultrapassadas, cores desgastadas e flores pintadas de fresco... o meu peito rasgado, remendado de cima a baixo, cosido à pressa em noites de lágrimas e dor, em dias dormentes e dolentes.. demasiado apertado para respirar, demasiado repuxado em cima de um coração que já não cabe aqui dentro. Edemaciado pela dor da desilusão, da incompreensão, pela dor do abandono...

Quando fazemos escolhas e nos colocamos em posição de perder alguém, o vemos e mesmo assim insistimos em permanecer nesse caminho, doa o que doer... qual o valor que damos a esse alguém? Que amor mostramos?


Agora só quero aquilo que é verdadeiro.
Aquilo que vale a pena.
Deixar o meu coração sentir o que sente.
Sem preconceitos, sem medos, com todos os meus erros e más escolhas, com tudo aquilo que faz de mim quem eu sou na montra. Seja o que tiver que ser... Com um asterisco.......

* digna de amor de qualquer forma.



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terça-feira, 5 de março de 2019

Amor adeus.

Não teria feito de outra forma.

Às vezes precisamos de sair da ilha para vermos a ilha. Às vezes precisamos de nos ausentar, de nos buscarmos nos escombros, de remar para longe, de mergulhar nas águas geladas e suster a respiração até os pulmões nos doerem. Às vezes precisamos de ´morrer´ um pouco para que a primavera volte a querer viver na nossa alma e no nosso coração. Às vezes o amargo da vida não serve senão para nos mostrar que nada acontece por acaso.

Desejei-o vezes sem conta. Demasiadas vezes. Deitei-me em camas vazias de nós, em camas cheias de nós, aninhei-me em silêncios ensurdecedores na minha cabeça e desejei-o tanto... tanto sem ti. Num rancor que não reconheço, numa dor na qual não me identifico, num clamor de misericórdia pela minha própria miséria... desejei-o vezes em conta. E ele tornou-se realidade.. Exactamente como o tinha desejado.

Fora da ilha, sentada numa bóia flutuante, a tentar não ser uma versão vazia de mim...vejo o quão vazia estou. O quão vazia fui. O quão cruel do alto do meu pedestal de mármore gelado.

Não teria feito de outra forma.

Diante de nós existem sempre duas escolhas. Dois caminhos. Duas opções. O nosso instante mágico que nos permite escolher por onde queremos ir. Por onde o nosso coração quer ir... Não sabemos onde nos leva, mas é essa escolha que nos torna donos do nosso destino. Das "coincidências" que não são mais do que sincronicidades, que nos mostram o que de melhor podemos encontrar ao longo desta estrada que se estende à nossa frente...

Acreditámos em nós na maior parte do caminho. Acreditámos nas reciprocidades das nossas escolhas. Acreditámos até que os nossos ponteiros alinhados se mexeram e deixaram de dar as mesmas horas...e deixaste de querer continuar a dar corda ao teu relógio. Não teria feito de outra forma.


Desejei-o. Mereci-o. Não tenho orgulho de quem fui em muitas das horas que bateram enquanto os ponteiros estiveram alinhados.


Só espero que um dia me perdoes.



"Adeus amor, adeus
Até um dia
Amor, adeus
Até ao dia em que nos teus braços falte eu..."



***

Hoje.

Nos claustros das minhas memórias a tua é das que mais ressoa em ecos saudosos mudos. A única que nunca, nunca escolheria ter para recordar....